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quarta-feira, 21 de junho de 2017

GERAÇÃO GUARANÁ !!!!

Lá pelos idos de 1985, fui hospedado em São Paulo na casa de um casal de amigos de amigos meus. 

Nessa época eu morava e estudava em Londrina, depois de um tempo em Ribeirão Preto e, antes, naquele vai e vem entre São José do Rio Preto e Nova Granada, desde 1959.

A mulher era secretária em uma imobiliária e o marido fazia manutenção de máquinas de café, da marca Seleto, em bares e padarias. Moravam na Vila Nova Iorque, na Zona Leste.

Estava passando um filme americano na TV e os personagens estavam bebendo Coca-Cola. A mulher comentou: "nossa, eles TAMBÉM têm Coca-Cola lá?!?" E ela disse aquilo sem nenhuma ponta de ironia ou sarcasmo. Era sério. Era ignorância pura mesmo. Ela achava que a bebida era brasileira.

E eles eram felizes assim sem noção. Riam muito. Nunca mais os vi.

Alguns anos antes, mais provavelmente uma década, lá em Nova Granada, uma menina que morava em Campinas, prima da minha namorada, estava visitando a cidade e passeando de carro conosco. De repente, ela nos assustou com um grito: "pára o carro!" 

Para nosso espanto, tão grande quanto o dela, ela justificou sorrindo, feliz da vida com a descoberta: "Olha! Um sapo! Um SAPO!!!" Ela nunca tinha visto um sapo ao vivo na vida. Que alegria!

E lá no Rio de Janeiro, um outro sobrinho da minha tia, carioca e residente na cidade, no final dos anos 70, não sabia se virar por lá, era perdido, não sabia, entre outras coisas, que era só pegar o ônibus "Cosme Velho" que a gente voltava pra casa. Minha tia até falou que quem parecia o carioca era eu e ele, o caipira de Nova Granada. Mas ele era feliz assim perdido.

Ao longo da vida, os episódios que guardei na memória, serviram para eu ir tirando conclusões. Estes que contei, por exemplo, no começo, me fizeram pensar "puxa, como as pessoas que moram em cidades grandes são ignorantes". 

Mais tarde, provavelmente meu pensamento evoluiu para "eu sou o esquisito: a maioria das pessoas, sejam de cidades grandes ou pequenas, de qualquer país, não são enciclopédia ambulante". 

Mais recentemente, minha amiga Vivian me chama de "Ralfo Discovery Channel", e olha que ela não fica longe. Na verdade, ela sabe de coisas que eu não tenho noção!

E ando triste. A última conclusão a que cheguei é que pessoas ignorantes são mais felizes. Quanto mais você toma consciência das coisas, menos você ri à toa.  
Minha ex-mulher dizia que essa aí era minha música.

Por exemplo: quando alguém nos Estados Unidos, onde fui várias vezes, me disse "no começo você se vestia estranho, agora você se parece com qualquer garoto da Califórnia, é um de nós". Fiquei feliz da vida por perder minha identidade, por me distanciar da minha origem.

Ou, quando um americano ao telefone me disse "puxa, seu inglês é perfeito, não tem nenhum sotaque! Eu falo com muitos brasileiros daí ao telefone e todos têm sotaque. Você parece um de nós!" Eu abanei o rabinho e dei cambalhotas.

Ou quando um britânico, depois de ser apresentado a mim em Salvador, em 1978, e conversarmos por um tempo, perguntou "de que lugar dos Estados Unidos você é mesmo?" Eu pulei, bati o focinho no sino e ganhei sardinhas, como uma foca amestrada!

Hoje, consciente de que sou colonizado, me sinto como o índio que foi obrigado a vestir roupas, ajoelhar diante da cruz feita de troncos na praia, teve de rezar em latim pra ser aceito e... continuou sendo índio até ser assimilado e exterminado.

De quem é a culpa de eu não ser mais bobo alegre? Chomsky, Milton Santos, Rui Costa Pimenta, Darcy Ribeiro, Fernando Morais? E agora? Eu me esforço para ser mais Maurício e menos Disney, mais Sítio do Pica-Pau Amarelo e menos Vila Sésamo, mais Almir Sater e menos Roy Orbison, mais Vanessa da Mata e menos Sheryl Crow. 

E o que eu faço com meus alunos de inglês agora? Eu sou um agente do expansionismo cultural do imperialismo? Sou um quinta-coluna da invasão e desmonte da brasilidade? É muito conflito interno. Eu tento compensar com minhas charges, meu discurso, meus textos, meu posicionamento político, pra limpar minha barra mental.

Agora meus três filhos estão aprendendo inglês, pra eternizar a espécie, como minha mãe me ensinou. As crianças na Inglaterra, por exemplo, usam esse tempo com outra coisa, já são filhos com um "plus a mais" em relação aos meus. Pensaram nisso? É difícil competir no mundo. É triste. Nascemos em desvantagem. Fomos invadidos, colonizados. Devíamos exigir cotas.
"Hey, kiddo, if you learn English, I'll give you a Coke and superhero comic books!"

O meu dique de resistência é a Coca-Cola. Pra mim é remédio, tal qual era quando foi inventada pelo farmacêutico Asa Candler em Atlanta. Li tudo a respeito. Dou aula disso. Ela é boa para quando me sinto entupido. E serve como produto de limpeza também. Desentope pia, limpa manchas na lataria do carro, desenferruja coisas, descola adesivos grudentos, tudo isso. Mas, para beber, sempre preferi guaraná.

Eu tenho receio de um produto industrializado que não descreve no rótulo o que eu estou consumindo. Afinal, do que é feito a Coca-Cola? Quais os ingredientes? Acho que é o único gênero alimentício do planeta que pode fazer segredo do que nos vende. 

Se é um potente líquido de limpeza, que dano pode causar lá nas minhas entranhas? Aliás, eu sei. Testemunhei um professor de biologia fazendo uma experiência: levou um pedaço de fígado de boi em aula, cortou metade e jogou o pedaço dentro de um copo com água. Beleza. Jogou a outra metade dentro de um copo com Coca-Cola. Coitado do fígado. Pode fazer a experiência em sua casa para ver o efeito da decomposição, de preferência, não com o seu fígado.

Além disso, eu sempre gostei do sabor do guaraná mesmo, principalmente o da Antárctica (o da Brahma era um horror, era empurrado aos bares que tinham de comprar junto com a cerveja - e o Taí, da própria Coca-Cola, é só pra cumprir tabela também) ou qualquer tubaína (muitas têm mistura de guaraná com outros sabores, como maçã). 

Lá em Nova Granada, tinha o delicioso guaraná Moscardini, caçulinha, presença obrigatória em todas as festinhas de aniversário. O velho Moscardini morreu e a fábrica fechou, os filhos não quiseram tocar o negócio, pena.

E eu tenho na estante, aqui do meu lado, uma lata e uma garrafinha do guaraná Jesus, do Maranhão, que foi comprado pela Coca-Cola, para evitar que expandisse e fizesse concorrência, pois já era possível encontrar em lojinhas de Fortaleza a São Paulo. 

Além de Jesus, a Coca-Cola comprou também o Matte Leão (pelo fígado, talvez) e os sucos Kapo e Del Valle. Foi quando a minha amiga Paula (que trabalhava no marketing da Del Valle, em São Paulo, e o departamento foi fechado e suas operações transferidas para o quartel-general da Coca no Rio de Janeiro) fez a piada: "o único líquido (não laticínio) que a Coca-Cola ainda não comprou foi a SABESP". 

A piada da Paula pode ter perdido a validade depois que o Alckmin colocou ações da Sabesp à venda na bolsa de valores de Nova York. A Coca-Cola já pode ter abocanhado um bom pedaço.

Essa é uma das diferenças em relação à concorrente Pepsi-Cola, que é mais sólida: é ou era dona de Elma Chips, Aveia Quaker, Atum e Sardinhas Coqueiro, achocolatado Toddy, biscoitos Mabel e sei lá mais o quê. 

Mas o meu lance com o guaraná vai além do sabor. Primeiro: ééééééé dooooo Brasiiilll, sil, sil, sil, meu povo! Guaraná da Amazônia! É nosso. Nos filmes americanos não tem. Tem acento no á!

Segundo: tem minha ligação emocional com a minha avó, mãe da minha mãe, que costurava pacas e fez minhas fantasias de carnaval do Zorro e do Batman. Ela dançou comigo "New York, New York", cantada pelo Sinatra, no meu primeiro casamento, em 1986. 

No ano seguinte, ela foi internada na Santa Casa de São José do Rio Preto e eu morava em Londrina, a 388 km, 5 horas de distância. Eu botei o carro na estrada e fui lá visitá-la no hospital. Ela disse para a enfermeira: "Este é meu neto mais velho. Ele veio de Londrina pra me ver". 

Fiquei lá um tempo, até acabar o horário de visitas, e voltar para Londrina, para trabalho e faculdade de Jornalismo. Na despedida, eu disse: "Vó, eu preciso ir. Você quer alguma coisa?" E ela respondeu: "Um guaraná". Saí, comprei um guaraná em alguma padaria e voltei ao hospital. Me despedi dela e caí de novo na estrada pra seguir a vida. E ela morreu lá.

Eu bebo guaraná in memoriam

Lembrando de tempos em que a gente tinha mais tempo. Tempo pra ficar com quem a gente gosta até morrer, não só dar um beijo e sair correndo, dava pra ouvir música, olhar pro céu e ver o tempo passar.

Mas vou confessar uma coisa: faz uns três dias, meus filhos compraram "chicletes" em forma de garrafinhas de Coca-Cola e com o sabor. Me deram uma. Achei gostosinho. Daí, por causa da chiclete, depois de muitos anos, me deu vontade de beber uma Coca-Cola, para espanto de mim mesmo. 

De vez em quando eu testo pra ver se alguma coisa mudou. Eu não gostava de agrião, por exemplo, e agora vai. Conclusão: um horror, especialmente o resíduo que ficou no final. Continua remédio. 

Mas se o assunto é alguma coisa grudenta ou manchada ou entupida, a primeira solução que me vem à cabeça, não é outra. Diabo Verde e água sanitária só me ocorre depois. E estive em abril no Mato Grosso entrevistando caminhoneiros para a revista Carga Pesada, quando um deles me revelou: peças do caminhão grudentas com graxa e barro, que eles não conseguem limpar com nada, gasolina, álcool, detergente ou nitroglicerina, só tem uma solução, que os caminhoneiros recomendam - Coca-Cola dissolve todo o enrosco. 

Tá, nitroglicerina eu inventei.

Viva nóis.